Uma rede de radiocomunicação digital, de alta tecnologia e uso exclusivo, interligando policiais e unidades da Polícia Federal em pontos extremos do Brasil, cujos gastos ultrapassam US$ 100 milhões e que deveria estar operante há quase dois anos, corre riscos de não funcionar como foi projetada. Com sofisticado mecanismo de criptografia para comunicação de voz e dados, que evita a interceptação de sinais, o projeto prevê acesso a bases de dados criminais, identificação através de impressões digitais, localização de veículos e pessoas através de GPS e pronta comunicação através de celular ou rádio, em viaturas em movimento, por exemplo.
A partir da migração para a plataforma IP, o mesmo usado pela internet, o sistema conhecido como Tetrapol permitiria acesso a e-mail e redes coorporativas da PF, telefonia Voip e outras funcionalidades e facilidades da internet. Na sua versão completa, nove centros de controle estariam instalados em pontos estratégicos do território nacional, com comando central em Brasília. Pelo cronograma, até novembro de 2011 estariam ativas mais de 100 estações rádio base fixas, 220 repetidores digitais independentes, 27 sites de gestão tática e 9 mil terminais móveis. Também foi prevista uma plataforma de treinamento para capacitação de técnicos.
Viabilizar a comunicação em serviços de rotina, operações especiais e o apoio da PF na segurança dos grandes eventos foram algumas das justificativas para os investimentos. Às vésperas da Copa das Confederações, realizada este ano, a PF recebeu novos equipamentos, como veículos, robôs e roupas antibombas, mas os policiais continuaram sem comunicação.
Um desalento – Além de não funcionar durante os eventos já ocorridos, é bem provável que a rede de radiocomunicação não esteja operante para os próximos. Nem para os Jogos Olímpicos, em 2016, muito menos para a Copa do Mundo, em junho do próximo ano. O Tetrapol é um item do projeto da rede nacional de comunicação conhecida como “Integrapol”, prevista no programa denominado “Pró-Amazônia/Promotec”, um acordo de cooperação bilateral, assinado em 1997 pelos governos do Brasil e da França, com o objetivo de reaparelhar vários setores da PF.
A primeira fase de implantação da rede de radiocomunicação digital foi iniciada em 2005, no Distrito Federal e nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro. Posteriormente, algumas superintendências instalaram estações de rádio base, cujo alcance é local. Os idealizadores do projeto talvez tenham dimensionado mal os custos e as dificuldades para implantação de uma rede nacional de radiocomunicação, num país com dimensões continentais. Escassez de recursos e de mão de obra especializada para implantação da nova tecnologia, assim como desconfiança e falta de conhecimentos técnicos por parte dos sucessivos gestores do projeto e ocupantes de cargos de direção da PF (na maioria, bacharéis em Direito), dentre outros fatores, comprometeram o cronograma de implantação da rede.
Em 2010, um dos diretores do órgão sugeriu a extinção de vários cargos da carreira de apoio, entre eles o de agente de Telecomunicações e Eletricidade, fundamental na implantação da rede. À época, a PF pleiteava junto ao Ministério do Planejamento a abertura de novas vagas para servidores desta área, justamente para fazer funcionar a Rede Tetrapol. Foi um desalento para os técnicos que apostavam na viabilidade e se esforçavam para implantar o projeto. Muitos deles foram remanejados para outras áreas.
Rede não funciona – Outras dificuldades emperraram a expansão da rede, como entraves burocráticos nas negociações com proprietários dos locais escolhidos para instalação de antenas e estações de rádio base; limitação de recursos para obras de engenharia; falta de interesse das operadoras para compartilhamento de antenas e incompatibilidades técnicas para instalação de links, na ligação de estações base com os centros de comando, de acordo com os protocolos de comunicação dos equipamentos. A falta de sintonia com outros entes da administração pública federal, como a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) foi empecilho adicional para a concretização do projeto.
Na prática, o que deveria se tornar uma moderna rede nacional de radiocomunicação, até hoje não passou de sistemas locais e isolados, através dos quais os policiais conseguem contato, na melhor das hipóteses, num raio de poucos quilômetros. Centenas de novas viaturas da PF nem foram equipadas com rádio, já que a rede de comunicação não funciona.
Através do Sistema de Informação ao Cidadão, a Divisão de Telecomunicações (Ditel) da PF, em Brasília, confirmou que foram adquiridos e entregues às 132 unidades do órgão, nas capitais e no interior,8.788 equipamentos novos. Quanto ao número de aparelhos em uso e das unidades da PF que estariam interligadas pela rede, o delegado-chefe da divisão sugeriu que fossem consultadas as 27 superintendências regionais do órgão. O chefe da Ditel talvez tenha ficado constrangido em admitir o que a maioria dos policiais federais já sabe, há anos: os terminais móveis não estão sendo usados porque a rede não funciona, nem nunca operou de forma permanente. É improvável que o dirigente desconheça que as unidades da PF, instaladas em regiões diferentes, não tenham condições de se comunicar através da rede de radiocomunicação.
Custos adicionais – Quando são usados de forma esporádica, como simples rádios HT (hand talk), durante operações policiais, após a instalação temporária de repetidoras e antenas, na maioria das vezes, os terminais não funcionam de forma confiável, devido a limitações de cobertura, tanto em área urbana quanto rural, principalmente em áreas de relevo irregular. A maior parte dos rádios, importados da Alemanha, está engavetada há oito anos. Muitos nunca foram usados. E talvez nunca sejam. A vida útil prevista dos equipamentos adquiridos pela PF é de 20 anos.
De acordo com reportagem publicada pela Folha de S.Paulo (9/6/2012), a decisão tomada pela Anatel de alterar a frequência exclusiva dos órgãos de segurança pública, que foi destinada à internet de alta velocidade e telefonia no campo, exigirá gastos adicionais de até 30% dos investimentos já realizados, com a troca de equipamentos, que deveria ser feita até 2015. A migração da faixa não era novidade. Esta proposta foi submetida à Consulta Pública nº 682, pela Anatel, em 2006. Naquele ano, Cristiano Torres do Amaral, especialista em Comunicações Críticas da PM de Minas Gerais, já alertara sobre o problema que estaria se criando para a radiocomunicação da segurança pública.
O aviso parece ter sido ignorado por gestores do projeto da PF e da Secretaria Nacional de Segurança Pública, do Ministério da Justiça, patrocinadora do projeto de radiocomunicação digital, para a polícia do Rio de Janeiro, apontado como um dos legados dos Jogos Panamericanos, de 2007.Na estimativa da própria PF, feita há quase três anos, divulgada pelo Valor Econômico (10/1/2011), a mudança de faixa e substituição de equipamentos, inclusive dos quase 9 mil terminais móveis, implicaria custos adicionais de R$ 70 milhões (cerca de US$ 42 milhões, à época, correspondente a R$ 92 milhões, em valores atualizados).
Maior segurança e comunicação mais rápida – Depois de anos praticamente sem uso, os equipamentos de rádio adquiridos pela PF deveriam ser substituídos em dois anos, de acordo com as regras da Anatel, o que elevaria o custo do projeto para cerca de R$ 300 milhões. Ainda assim, não estaria garantido que os rádios passariam a funcionar, já que a rede de abrangência nacional não foi concluída. Só para ilustrar, o valor total dos gastos seria suficiente para contratar, pelo período superior a 50 anos (!), um plano corporativo de telefonia móvel, oferecido por operadora com cobertura nacional, para 9 mil linhas, em pacote que inclui ligações e mensagens ilimitadas para celulares da mesma operadora, franquia limitada de ligações para outras operadoras, em qualquer parte do país, além de acesso à internet. Sem contar a economia significativa dos gastos atuais com telefonia fixa, caso a rede de radiocomunicação funcionasse como deveria.
Os gestores da moderna rede de radiocomunicação digital e criptografada (mas inoperante) da PF talvez aleguem, com razão, que os serviços de telefonia celular oferecidos por empresas privadas não têm a mesma segurança e eficácia de uma rede exclusiva própria. Na definição do coronel W. Steven Flaherty, experiente chefe de polícia do estado da Virgínia (EUA), o rádio é o “salva-vidas” do policial. “Quando segundos contam, a comunicação clara e eficiente é que faz a diferença para um motorista ferido, para a vítima de um crime ou um policial ferido.”
Contudo, um sistema de telefonia celular vulnerável, sujeito a falhas e sobrecarga, ainda é melhor que uma rede de radiocomunicação exclusiva, mas inoperante. Não apenas para policiais, como em outras atividades de risco e serviços de emergência, comunicação é elementar e imprescindível. Por razões óbvias, para policiais, bombeiros, equipes de resgate e outros profissionais de serviços essenciais, a conhecida advertência do Velho Guerreiro Chacrinha é uma realidade constante: “Quem não comunica, se trumbica”. De acordo com especialistas da área de telecomunicações, de fato, a radiocomunicação é mais eficiente do que a telefonia celular convencional porque garante maior segurança às operações e permite a comunicação mais rápida, direta, segura, independente de sinal de cobertura de operadoras.
“Casa de ferreiro, espeto de pau” – Esta é uma das justificativas que constam da Portaria 30.491, editada pela Coordenação-Geral de Segurança Privada, da própria PF, publicada no Diário Oficial da União, em 30/01/2013, para regulamentar a forma de emprego dos meios de comunicação entre as empresas de segurança privada e seus veículos, bem como entre os vigilantes que atuam na atividade de transporte de valores. A nova norma prevê que “o sistema de telefonia pode ser admitido em situações excepcionais, como forma de viabilizar a comunicação ininterrupta quando não há possibilidade de utilização plena do sistema de radiocomunicação”.
Outra justificativa é que a alternativa do uso da telefonia propicia mais proteção à integridade física e à vida de vigilantes, que poderão manter comunicação permanente com as bases operacionais, durante toda a operação, onde quer que estejam. A portaria passou a exigir que os veículos de transporte de valores sejam equipados com sistema de radiocomunicação que envolva Serviço Limitado Móvel Especializado (SLME) ou Serviço Limitado Móvel Privado (SLMP), com funcionamento em toda região metropolitana das cidades onde as empresas de segurança mantêm unidades.
De acordo com a norma, “não é aceitável que os vigilantes saiam do veículo utilizando apenas aparelhos que dependam de cobertura de operadoras de telefonia celular ou radiocomunicação, pois esse tipo de operação de alto risco requer comunicação rápida, direta, compartilhada entre os vigilantes e que funcione mesmo sem qualquer tipo de sinal ou cobertura de operadoras ou de sistemas SLME ou SLMP”. O rigor da PF nas exigências às empresas de segurança privada faz lembrar o velho ditado “casa de ferreiro, espeto de pau”. Por ironia, a mesma PF não disponibiliza aos policiais nem radiocomunicadores, nem telefones celulares. Como se a execução de serviços de segurança privada fosse de menor risco que a atividade policial. Atualmente, na PF, apenas chefes de unidades (que raramente vão às ruas) contam com telefones celulares funcionais.
Caso de polícia? – Enquanto isso, cerca de 2 mil carteiros, em todo o país, já estão usando smartphones,para atualizar em tempo real as informações sobre a entrega de encomendas. A previsão é que a ferramenta seja utilizada em breve para os todos os serviços de entrega registrada, de acordo com recente notícia, divulgada pelos Correios. A maioria dos policiais federais, durante as midiáticas operações ou no trabalho rotineiro de investigações, se vê obrigada a usar telefones pessoais em serviço, no contato com integrantes de equipes em missão, com outros servidores públicos, testemunhas, informantes, pessoas e empresas investigadas ou fiscalizadas pela PF e até com as próprias unidades onde são lotados. Consultas remotas às bases de dados criminais, essenciais em qualquer trabalho de campo, atualmente só são possíveis através de aparelhos particulares de comunicação.
Numa tentativa de suprir, na marra, a falta de meios de comunicação, no início do ano, o superintendente da PF no Paraná ameaçou instaurar processos disciplinares contra os policiais que se recusassem a usar o telefone particular em serviço. Em Varginha, o chefe da unidade cogitou pedir a PM, para acionar aqueles que se recusassem a usar seus telefones particulares em serviço. Como se o policial fosse obrigado a manter telefone celular pessoal. Em julho, após divulgação sobre equipamentos de raio X e detectores de metais, no valor de R$ 1 milhão, comprados para uso nos Jogos Pan-Americano de 2007, que estavam “esquecidos”, sem destinação definida, num depósito da Superintendência da PF no Rio, o Grupo de Controle Externo da Atividade Policial do Ministério Público Federal (MPF) instaurou um procedimento, para cobrar providências dos gestores da PF, para que os bens fossem colocados em efetiva operação.
No ano passado, um relatório da Controladoria Geral da União (CGU) concluiu que a PF não tem sistema adequado de controle de riscos de seus sistemas eletrônicos e, há três anos, não cumpre o cronograma para melhorá-lo. A notícia foi divulgada após panes no sistema central de computadores do órgão, que comprometeram a emissão de passaportes e outros serviços. De acordo com a auditoria da CGU, não foi cumprida nem a metade das ações previstas para melhorar a segurança da informação. Para quem se preocupa com a aplicação de recursos públicos sempre escassos, tornam-se inevitáveis alguns questionamentos, sem entrar no mérito das opções e critérios técnicos que orientaram a aquisição dos equipamentos de radiocomunicação. Nem nos interesses e lobbies comerciais de empresas e tecnologias concorrentes, que disputam o milionário mercado.
O que o MPF, o CGU e o Tribunal de Contas da União (TCU) teriam a dizer sobre o cronograma de implantação da rede de comunicação da PF, que deveria ter sido concluída há dois anos e até hoje não funciona? E quanto à situação atual de equipamentos que nunca foram usados, cujos investimentos foram muito mais vultosos? E sobre os prejuízos aos cofres públicos causados pela decisão da Anatel?
Seria apenas um problema de gestão ou, sem trocadilho, mais um caso de polícia?
Fonte: Observatório da imprensa
Autor: Josias Fernandes Alves, membro do Conselho Jurídico da Fenapef
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