A Central Única dos Trabalhadores (CUT) manifestou recentemente posição contrária ao projeto de lei que autoriza o funcionamento das fundações estatais em saúde e em outras áreas de governo. O projeto é acusado de ser intento para privatizar serviços atualmente prestados diretamente pelo Estado e de contrariar o direito à estabilidade dos trabalhadores do setor público. O alvo principal do protesto é o ministro da Saúde, José Temporão, aguerrido defensor do projeto em sua aplicabilidade aos hospitais do SUS. O ministro preconiza que a fundação estatal é a solução institucional adequada para conferir autonomia financeira e gerencial aos hospitais, de tal modo a garantir que seus serviços tenham qualidade, continuidade e satisfação por parte dos usuários. Segundo o ministro, os trabalhadores desse novo tipo de entidade, colocados sob regime jurídico da CLT, deveriam ser responsabilizados no exercício de suas atribuições assistenciais e não gozariam de estabilidade, sendo eventualmente demitidos por desempenho insuficiente.
Diante da polêmica, uma questão deve ser respondida pelo pesquisador de gestão pública: como o projeto efetivamente se configura face à relação entre o interesse público e a iniciativa privada? É preciso sublinhar inicialmente que a figura da fundação estatal não é exatamente uma novidade. Seus contornos jurídicos são apenas atualização da fundação pública de direito privado, um componente da administração pública indireta que tem história anterior à Constituição de 1988. O que o governo federal pretende fazer agora é implementar uma previsão constitucional (dada pelo inciso XIX do artigo 37), definindo as áreas de atuação das fundações estatais, que passam a ser autarquias dedicadas à realização de serviços, tais como saúde, cultura, desporto e assistência social.
Trata-se de áreas de ação não exclusivas do Estado, onde o poder público precisa de maior agilidade, qualidade e atualização tecnológica na prestação de serviços, a fim de estabelecer certo grau de concorrência com a iniciativa privada. A autonomia na execução de orçamentos e na realização de contratos obedece, contudo, a algumas normas essenciais que se aplicam a outros órgãos da administração pública. Por outro lado, a fundação manterá contrato de gestão com o pertinente órgão diretivo de governo, no qual são especificadas metas de desempenho a serem alcançadas. Tanto as normas públicas gerais quanto o contrato de gestão restringem a autonomia do gestor da fundação estatal, no sentido de favorecer e incentivar o alcance de uma missão de caráter público. A fundação estatal é, portanto, um modelo de administração pública com autonomia regulada.
Para entender melhor as possibilidades e os limites dessa autonomia regulada, pode ser considerado o exemplo de um grande hospital especializado, que mantém centro avançado de pesquisas. Quando funcionar como uma fundação estatal, será facultada a esse hospital a liberdade para captar junto a qualquer financiador, público ou privado, recursos a serem aplicados em suas pesquisas. Mas não lhe é permitido aumentar receitas atendendo aos pacientes de plano de saúde, pois isso conflita com sua missão principal, que é a de atender aos pacientes do SUS. O contrato de gestão determinará as dimensões qualitativas e quantitativas desse vínculo obrigatório com o SUS, mas não deverá regular uma série de funções complementares ou de apoio, entre as quais consta a operação do centro avançado de pesquisa.
Contudo, o gestor desse hospital de fundação estatal não está autorizado a contratar um único médico ou outro profissional sem que realize concurso público. Isso está regulamentado na lei do emprego público (contratação celetista) que obriga a realização de prova escrita, com ou sem avaliação de títulos, em conformidade com a complexidade do emprego a ser exercido. Ademais, o fato de os trabalhadores serem admitidos sob vínculo celetista, não vai conferir ao gestor da unidade o direito de demitir sumariamente qualquer um deles, como pode acontecer numa empresa privada. É preciso que seja aberto processo administrativo de modo a avaliar se há justa causa para a demissão. No que diz respeito essa questão, que concerne à falta de estabilidade do trabalhador da fundação estatal, é importante que se tenha em conta que, desde a Emenda Constitucional nº. 19, o servidor estatutário é igualmente suscetível de demissão por insuficiência de desempenho.
O gestor da fundação estatal está obrigado a obedecer a amplo conjunto de regras do Direito Administrativo brasileiro, entre elas o dever de realizar licitação pública na aquisição de materiais e equipamentos. A imposição desse tipo de regra deixa claro que a implementação do projeto de fundação estatal não é fruto de intento de colocar os serviços públicos do SUS na órbita privada. Se assim fosse, mais fácil seria para as autoridades federais dar início a uma transformação maciça dos hospitais do SUS em organizações sociais (OS), conforme está facultado na lei pertinente ainda em vigor, que vem do processo de reforma administrativa do Estado ocorrido na década passada. Em comparação com as organizações sociais, o modelo de fundação estatal é muito mais limitado em suas possibilidades de relação com o mercado de trabalho e com o mercado em geral, no sentido de que está obrigado a aplicar determinados princípios de justiça e medidas de controle que são peculiares a toda a administração pública. A única garantia de que uma OS funcione de acordo com o interesse público está configurada no cumprimento dos acertos que constam do contrato de gestão. De sua parte, a fundação estatal dará essa garantia em dobro, porque, a par da consonância prévia com certas normas públicas, manterá, também, contrato de gestão com o órgão diretivo respectivo. Ademais, será supervisionada por um conselho curador, do qual participam representantes dos trabalhadores e da sociedade civil.
Sabe-se que, atualmente, muitos dos hospitais públicos adotam práticas de recursos humanos que contrariam integralmente o princípio da legalidade da ação do Estado. Há proliferação de contratos espúrios, celebrados com cooperativas e outras entidades, que suprem força de trabalho em áreas assistenciais e administrativas. O princípio de eqüidade inerente ao concurso público não costuma ser contemplado na admissão dos novos trabalhadores. Isso quer dizer que, a despeito de conservarem fachada de órgão público com formato tradicional, esses hospitais, por falta de autonomia legalmente favorecida, operam de acordo com a lógica privada na busca de certas flexibilidades de gestão. Mas, ao assim procederem, incidem em práticas incompatíveis com as normas públicas vigentes. Nesse sentido, a fundação estatal é essencialmente preservadora da legalidade do Estado, visto que todas suas possíveis medidas administrativas já estão previamente conformadas às flexibilidades e às limitações que a própria lei prevê.
As entidades dos trabalhadores da saúde conhecem bem essas irregularidades, as dificuldades e, em algumas situações, o caos instalado na administração de muitos dos hospitais públicos do país. Sabem da importância da constituição de canais permanentes de negociação dos trabalhadores com os gestores públicos. Por outro lado, tem havido algumas experiências relativamente bem-sucedidas de mesas de negociação instaladas em hospitais públicos. Contudo, a amplitude daquilo que pode ou não ser negociado pelo gestor nessas mesas é limitada pelo seu grau de autonomia financeira e administrativa na gestão da unidade. Em geral, quase tudo o que prometem em negociação com os trabalhadores está na dependência de ser alcançado por decisão de alguma instância ou autoridade que lhe é superior. Por isso, as entidades dos trabalhadores deveriam ponderar cuidadosamente não só sobre o caráter de autonomia regulada, conforme aqui descrito, mas, também, sobre o quanto o modelo das fundações estatais poderá favorecer a generalização dos processos de negociação permanente entre trabalhadores e gestores, no SUS e outras áreas da administração pública.
Artigo – Roberto Passos Nogueira
Correio Braziliense
10/9/2007
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