Planalto já tem parecer sobre inconstitucionalidade da efetivação, em debate na Câmara, de 260 mil servidores

O trem da alegria que os deputados querem colocar nos trilhos – com a efetivação de pelo menos 260 mil servidores não concursados – fere cláusulas pétreas da Constituição e o “direito de acesso isonômico aos cargos e empregos públicos mediante concurso”, mas não é a primeira vez que isso ocorre na história recente do Brasil. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva já recebeu pareceres jurídicos de sua assessoria mostrando que as emendas constitucionais que beneficiam servidores celetistas, temporários e requisitados são inconstitucionais, mas a cúpula do governo prefere adotar uma estratégia de silêncio para não arrumar briga no Congresso.

No ano passado mesmo, às vésperas das eleições, o Congresso aprovou uma emenda constitucional e o presidente Lula editou uma medida provisória para regularizar a reintegração de 5.365 agentes de combate à dengue, os chamados mata-mosquitos, que haviam sido demitidos ao final do governo Fernando Henrique Cardoso. Eles pegaram carona numa PEC que também possibilitou a efetivação de outros 200 mil agentes comunitários de saúde contratados temporariamente por Estados e municípios.

Essa PEC foi apresentada originalmente por um petista, o deputado Maurício Rands (PE), e, embora não tenha garantido estabilidade no emprego aos interessados, como prevê o atual pacote em tramitação na Câmara, infringiu a Constituição por consolidar sua contratação sem concurso. A Advocacia-Geral da União (AGU) chegou a emitir parecer contrário, mas a negociação política acabou predominando, e nenhuma ação contrária foi movida pelo governo.

RECRUTAS

Outra emenda em tramitação na Câmara, do tucano Zenaldo Coutinho (PA), estende o mesmo direito a todos os servidores temporários que estejam há 10 anos trabalhando. Mas esse trem da alegria tem vários vagões, alguns dos quais nem chamaram ainda a atenção do público, como a PEC 203, do deputado Sandes Júnior (PP-GO), que propõe o ingresso automático nos quadros da Polícia Militar dos recrutas que concluem serviço militar obrigatório.

A inconstitucionalidade dos atuais projetos que beneficiam servidores temporários, celetistas e requisitados decorre do que diz o Artigo 37 da Constituição: “A investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos.” Além disso, eles ferem o princípio da isonomia entre os cidadãos, que é uma das chamadas cláusulas pétreas da Constituição, que não podem ser contrariadas em qualquer hipótese.

“O direito que todos temos a ser tratados de forma igual pelo Estado é direito fundamental. E o procedimento do concurso público como requisito para ingressar no serviço público nada mais é que manifestação desse princípio constitucional”, diz o professor de Direito Constitucional da PUC de São Paulo Pedro Serrano.

Os próprios constituintes, entretanto, abriram brechas na Carta que promulgaram em 5 de outubro de 1988, ao incluírem no texto das disposições transitórias um artigo que dava estabilidade no emprego a todos os servidores que estivessem há pelo menos cinco anos na função. Muitos desses servidores não eram concursados, e outros tantos eram celetistas, ou seja, regidos pelas leis trabalhistas do setor privado, e do dia para a noite receberam os mesmos direitos dos servidores estatutários, além de poderem sacar seu FGTS.

Esse tipo de concessão, de acordo com especialistas em administração pública, tem sido uma tendência no Brasil desde a Constituição de 1946. A cada nova revisão constitucional, os parlamentares são tentados a garantir efetividade ou estabilidade aos que não foram admitidos por concurso no período constitucional anterior.

Segundo um assessor do Planalto, são tantas as brechas e furos que sempre existiu a burla ao princípio da isonomia e do concurso público.

Passados quase 20 anos desde a última Constituição, os servidores que em 1988 não conseguiram pegar carona no “transatlântico da alegria” (tinham menos de cinco anos de serviço) buscam agora subir a bordo passando uma borracha no passado, com auxílio de parlamentares que têm sua base eleitoral no funcionalismo, como Gonzaga Patriota (PSB-PE) e Átila Lira (PSB-PI), um autor e outro relator de duas das três PECs que o presidente da Câmara, Arlindo Chinaglia (PT-SP), colocou na pauta de votação.

CORTINA DE FUMAÇA

Em escalões intermediários do governo também há setores interessados na aprovação das PECs, principalmente a que beneficia requisitados de Estados e municípios, o que amplia a cortina de fumaça em torno do assunto.

Até agora, por exemplo, o Ministério do Planejamento não apresentou qualquer estimativa oficial sobre os impactos fiscais e potenciais beneficiários dos projetos.

Apesar das dificuldades naturais de calcular os custos, no Palácio do Planalto crescem as suspeitas de que a falta completa de informações da Secretaria de Recursos Humanos (SRH), que controla os dados da folha de pagamento do Executivo federal, esteja relacionada a interesses de corporação.

Mas essa situação não se restringe aos gabinetes governistas. Nas lideranças dos partidos de oposição, também há muitos assessores que seriam beneficiados com a possibilidade de trocar seu cargo em uma prefeitura ou Estado por uma função equivalente no Legislativo federal, onde o salário é bem maior, como prevê a emenda de Patriota.

O Executivo acompanha o assunto com prudência, segundo um advogado da União. Nos bastidores, entretanto, o que se diz é que o governo não quer confusão com sua base.

 Lula e FHC contrataram 76 mil sem concurso

A política de contratação de servidores temporários, sem concurso público, disseminada pelo governo federal e, principalmente, pelos governos estaduais e municipais, tem sido um prato cheio para os lobbies em torno da efetivação de funcionários que entram para ficar apenas um ou dois anos no setor público, mas acabam tendo seu contrato prorrogado indefinidamente. Só na esfera federal, os ingressos de servidores com contrato por tempo determinado somaram 76.660 desde 2000, nos governos Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, enquanto as admissões por concurso ficaram em 60.121.

Estes números fazem parte do Boletim Estatístico de Pessoal do Ministério do Planejamento. Uma grande parte das contratações temporárias é de professores universitários. Desde 2000, as universidades já contrataram 33.337 funcionários para dar aula nessa condição e apenas 9.652 por concurso. Embora mais baratos para os cofres federais, os temporários têm também menos preparo e formação acadêmica.

No caso dos professores, o caráter temporário dos contratos tem sido, em geral, cumprido. Eles são rescindidos após um ou dois anos, e a vaga é preenchida de novo. O mesmo não ocorre em outras áreas da administração, o que leva o Ministério Público do Trabalho a mover ações contra a União e estimula parlamentares a defender a incorporação de servidores temporários.

Pelo balanço oficial, a União gasta cerca de R$ 400 milhões por ano com esse tipo de contrato, o que é pouco frente à folha de pagamento, de R$ 115 bilhões. Mas, na verdade, o gasto é maior e é contabilizado em outras rubricas. É o caso dos contratos entre o governo e as entidades internacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU). Em diversos gabinetes da Esplanada, há pessoas que foram contratadas por intermédio dos programas da ONU e recebem de forma terceirizada.

Também chama a atenção o aumento de ocupantes de cargos comissionados no Executivo federal que são requisitados de outras esferas de governo e órgãos ou não possuem vínculo com o setor público. De acordo com o Ministério do Planejamento, eles eram 4.016 no final de 2000 e agora já somam 6.081.

Nos Estados e municípios, as despesas com temporários são ainda maiores, atingindo R$ 5,5 bilhões, de acordo com o Tesouro Nacional. Além disso, prefeitos e governadores substituem os serviços prestados por funcionários concursados por outros que não são limitados pela Lei de Responsabilidade Fiscal.S.G.

Sérgio Gobetti

O Estado de S. Paulo

20/8/2007