Nas últimas décadas, os movimentos negros e de mulheres vêm conseguindo expor o caráter racial e de gênero das divisões que organizam a sociedade brasileira. Mas são os primeiros que têm, sem dúvida, pautado o debate.

A partir do momento que algumas universidades públicas adotaram as cotas para negros e indígenas, as posições sobre o assunto se tornaram mais explícitas. Nas últimas semanas, as discussões sobre o Estatuto da Igualdade Racial produziram manifestos de intelectuais e artistas, a favor e contra as cotas raciais: as cotas deveriam ser implementadas de acordo com critérios étnico-raciais ou sociais? Em outras palavras, seria mais justo que o Estado reservasse espaço nas universidades para negros e indígenas ou para os mais pobres (estudantes de escolas públicas, por exemplo)?

O noticiário, em geral, assumiu essa polarização ao tratar do assunto. Mas pouco se fala sobre as razões, ou os critérios de justiça, que orientam a defesa de qualquer tipo de cota. Pouco se fala sobre o que orienta as chamadas políticas afirmativas, ou compensatórias, que implicaram na adoção, em diversos países, de cotas para mulheres, negros e minorias.

Muitos dos que se posicionam contra as cotas, ou contra as cotas raciais especificamente, levantam a bandeira da igualdade. Se somos, pela Constituição brasileira e pelos princípios e valores democrático-liberais, todos iguais, por que, afinal, o Estado deveria interferir, reservando espaço para alguns? Direitos e deveres, argumenta-se, deveriam ser universais, isto é, garantidos a todos igualmente, tornando-os capazes de concorrer em uma espécie de mercado livre das idéias, das posições econômicas e de poder. Em geral, esse posicionamento é acompanhado da defesa de que Estado e sociedade deveriam combater as razões estruturais da desigualdade ao invés de compensá-las.

É justamente nesse ponto, o das desigualdades estruturais e de suas relações com a igualdade, que se situam os argumentos favoráveis às políticas de caráter afirmativo e às cotas em instituições de ensino, cargos públicos, mandatos eletivos.

Seguem alguns desses argumentos: em primeiro lugar, os direitos universais que correspondem à defesa de uma igualdade em abstrato não são capazes de evitar as desigualdades de fato; em segundo lugar, na maior parte dos países do Ocidente que adotaram os preceitos democrático-liberais, as formas de exclusão e opressão incidem diferentemente sobre os grupos que compõem as sociedades, implicando em obstáculos ao acesso de alguns grupos à política, aos bens de cultura e de status. Isso significa que, respeitados os valores universais e a igualdade em abstrato, o poder tende a se concentrar nas mãos de homens, brancos e ricos. E ainda: as exclusões existentes reforçam a idéia de que seria natural que alguns grupos (mulheres, negros e minorias étnicas, por exemplo) não “pertençam” a alguns espaços, justamente àqueles espaços que proporcionam poder, influência e reconhecimento, como a política, as instituições de ensino superior, as profissões e cargos de maior prestígio e remuneração.

Nesse sentido, a defesa da democracia, baseada em valores como igualdade, inclusão e justiça, deveria referir-se às formas concretas de exclusão. A teórica política feminista e professora da London School of Economics Anne Phillips formula bem o problema: em algumas circunstâncias, igualdade significa tratamento diferenciado; em outras, significa tratamento igual. No caso específico da representação política (e da problemática das cotas eleitorais ou no parlamento), Phillips ressalta que devemos observar como a representação funciona nas condições existentes, e como arranjos baseados em princípios gerais de justiça podem favorecer alguns grupos em particular. Pode-se estender essa observação a outros espaços sociais, como as instituições de ensino.

Há um grave problema para a democracia quando, em nome do mérito individual ou da livre competição entre iguais em abstrato, alguns indivíduos e grupos são mantidos fora dos espaços que lhes permitiriam ter uma maior influência sobre os rumos da sociedade. As cotas sociais e raciais (será mesmo preciso escolher?) podem ser entendidas como instrumentos capazes de dar acesso a posições de poder aos estruturalmente excluídos, para que eles possam fazer parte do desejado processo de transformação das desigualdades estruturais. Ou será que as portas deveriam continuar fechadas enquanto alguns decidem ou formam-se com recursos públicos para decidir sobre a “má sorte” de outros?

Artigo – *Flávia Biroli

Correio Braziliense

*Doutora em história pela Unicamp, é professora adjunta do Instituto de Ciência Política da UnB fbiroli@terra.com.br)