O ordenamento pátrio encontra-se hoje, a par de tantas outras falhas, com uma lacuna odiosa, a qual fulmina diretamente uma parcela significativa da população, tolhendo o pleno uso de seus direitos constitucionais. Refiro-me à classe dos servidores públicos que, apesar de verem reconhecidos seus direitos na Carta Política de 88, encontram-se manietados ao descaso do Constituinte derivado.
A conquista do direito de greve, ao contrário do que muitos pensam, não é fruto de lobbies ou mendicâncias parlamentares, e sim de contínua luta contra arbitrariedades cometidas por patrões, no caso a própria Administração Pública. A greve, como sobejamente conhecido, é um fato, o qual prescindiu, conforme noticia a história, de lei própria para ser efetivado, tornando-se realidade inafastável e presente na sociedade hodierna, assinalando, desta forma, os contornos das leis que o garantiriam.
O direito de resistência (jus resistentiae) faz parte da categoria dos direitos tidos como naturais, imanentes a todo ser humano, independendo, portanto, de normas para seu exercício. Grandes pensadores, dentre os quais destaco Henry Thoreau 1, sempre foram incisivos no demonstrar que o indivíduo, em sendo parte de uma célula a que damos o nome de sociedade, tem não só a faculdade, como também o poder-dever de se indispor e pugnar pela observância dos seus direitos. Este poder, mais conhecido na forma de revolução, tem sido utilizado por povos ao redor do mundo, no afã de construir uma sociedade mais justa, livre e solidária (objetivo fundamental da nossa República – art. 3º, inc. I, da C.F.), alcançando quase sempre êxito neste intento.
No caminhar da humanidade fartos são os registros do uso do jus resistentiae, existentes desde os primórdios da palavra escrita. A título de ilustração podemos relembrar a Revolução Francesa, a Revolução Bolchevique e por fim a Independência da Índia, conduzida brilhantemente por um ícone mundial – Mahatma Gandhi (declaradamente influenciado pelo livro “Wadem” de Thoreu) – o qual, por meio da chamada “resistência pacífica”, fez curvar o mais poderoso império da época.
Atento a tais necessidades e a inevitabilidade do fenômeno, bem como ao clamor apaixonado dos trabalhadores, é que o Constituinte originário achou por bem garantir de forma indelével o direito de greve, fazendo-o constar do texto constitucional (art. 9º e 37, inciso VII), incorporando, assim, a recomendação constante da Convenção nº 151 da OIT (art. 8º), que dispõe sobre a institucionalização de meios voltados à composição dos conflitos de natureza coletiva oriundos da relação de trabalho entre o Poder Público e seus servidores. Contudo, faltou coragem ao constituinte, na exata lição do mestre José Afonso da Silva 2, deixando o mesmo de dar ao instituto os contornos desejados pela categoria.
A má redação do inciso (VII, do art. 37, da CF) tem sido causa de agruras incomensuráveis, divergindo doutrina e jurisprudência sobre o alcance e a eficácia do mesmo. De um lado há quem entenda ser a norma de eficácia plena, argumentando que o direito ali insculpido é de natureza fundamental, aplicando-se ao mesmo a regra do parágrafo 1º, do artigo 5º, da novel Constituição. Outra corrente afirma ser de eficácia contida, haja vista a limitação que lhe poderá ser imposta por lei específica, conforme parte final do referido inciso, e que, em não havendo norma infraconstitucional a regulá-lo, pode ser exercido amplamente. Por fim, existem os defensores da eficácia limitada da referida norma, ficando, portanto, para sua plena aplicabilidade, a depender da edição de ato legislativo, o qual atuaria como requisito indispensável ao pleno desenvolvimento da normatividade do preceito, equivalendo-se a dizer que, na inexistência desta integração legislativa, estaria recusado o direito prometido 3.
Como de costume em casos da espécie, o povo se viu obrigado a bater às portas do judiciário, bastião último da cidadania, para conseguir fazer valer seus direitos e ver definitivamente esclarecida questão tão importante para o proletariado da administração direta e indireta dos três Poderes. O Mandado de Injunção nº 20-4/DF 4 é prova inconteste deste anseio. Neste processo, julgado pelo pleno do Supremo Tribunal de Federal em 19 de maio de 1994, podemos presenciar verdadeira aula sobre os temas abordados neste artigo, aonde várias correntes são levantadas, divergindo os Ministros sobre a natureza eficacial da norma contida no artigo 37, VII, sem chegar a um consenso, porém unânimes, conforme se infere dos votos expendidos, no reconhecimento do direito, embora, infelizmente, a decisão tenha sido no sentido da necessidade de norma infraconstitucional para seu exercício. Outra aspecto também desolador foi a não regulamentação por àquela Corte, na oportunidade, do conflito suscitado, limitando-se a declarar inertia deliberandi do Congresso Nacional, configurada objetivamente pela omissão legislativa no desempenho do seu poder-dever de editar a lei requerida, o que efetivamente estaria impedindo a viabilidade do direito de greve.
Agindo desta forma, o pretório excelso não prestou o serviço almejado pelos milhares de servidores espalhados por todos os cantos do País, olvidando a finalidade precípua da injunction, consistente em dotar de imediata aplicabilidade a norma lacunosa, bem como divorciando-se do único conteúdo plausível da decisão mandamental reclamada – a outorga do direito pleiteado. O resultado disto não poderia ser outro, passados mais de cinco anos daquela decisão, presente está a mesma situação, quedando-se inerte o Congresso Nacional, indiferente à sua obrigação legiferante e às necessidades dos seus mandantes – o povo. A esse respeito vale consignar, por apropriadas, a imagem do nossos parlamentares não só frente à população em geral como também no exterior, extraído das palavras de Keith S. Rosenn 5, em entrevista concedida à CONSULEX, [sic] “- Acho que não tem jeito. Não há como o Poder Judiciário mandar o Congresso legislar. E esse Congresso daqui faz tudo, menos legislar. Quem faz a legislação no Brasil é o Poder Executivo. O Congresso faz barulho, o Congresso faz fofoca, o Congresso faz escândalo, mas não faz lei…”.
Em uma última tentativa a Emenda Constitucional 19/98 reformulou a redação do indigitado inciso, que passou a exigir lei específica, ao invés de complementar, para sua regulamentação. Espera-se que a finalidade da alteração seja tornar possível a formulação de tão necessária e aguardada lei, tendo em vista que a mudança na natureza da lei desvincula da obrigação constitucional de quorum qualificado, exigido pelo artigo 69 da Carta Magna.
Mister se faz, porém, assinalar que os Tribunais, entre eles, e com louvor, o Superior Tribunal de Justiça, vêm corajosamente reconhecendo o do direito de greve dos servidores públicos 6, numa demonstração clara de que os desmandos da Administração Pública, aliado ao descaso e conivência do Poder Legislativo, encontram no Poder Judiciário barreira fiel a resguardar a segurança do nosso ordenamento jurídico e os direitos inerentes à coletividade, desempenhando como percuciência e firmeza seu múnus público.
A clareza dos princípios jurídicos, vale ressaltar o suum cuique tribuere, o non liquet, amparados no princípio da indeclinabilidade da jurisdição, entre outros, confere ao juiz-cidadão, na feliz expressão de Antônio Souza Prudente 7, o poder e antes de tudo o dever de, ao cumprir sua obrigação de prestar a tutela jurisdicional, solucionando os conflitos de interesses apresentados, abster-se de uma vinculação fria ao texto da lei, atendendo aprioristicamente, na sua aplicação, aos fins sociais visados e às exigências do bem comum, sem perder de vista a importância da atividade judicante no iter criativo, atuando o processo e, a fortiori, a sentença como complemento necessário à efetividade do direito material, de acordo com os postulados da teoria unitária, ou constitutiva do processo.
Frente ao exposto, parece-nos intuitivo que o reconhecimento do direito de greve deferido aos servidores públicos é medida inarredável, sob pena de chegar-se a um absurdo, conforme preciosa lição jurisprudencial do eminente ex-Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, quando de sua brilhante e frutífera passagem pela Corte Federal 8, qual seja a eficácia da Constituição depender de norma hierarquicamente inferior.
NOTAS:
1 – Henry Thoreau (1817-1862), pensador e escritor americano.
2 – apud Curso de Direito Constitucional Positivo, 8ª edição, 1992, pag. 274, Malheiros Editores.
3 – idem, pág. 572.
4 – Mandado de Injunção 20-4, Distrito Federal, Relator Ministro Celso de Mello, Requerente:
Confederação dos Servidores Públicos do Brasil, Requerido: Congresso Nacional, de 19/05/94.
5 – Keith S. Rosenn é Diretor do Programa do Foreign Graduate Law, da Faculdade de Direito da Universidade de Miami. Entrevista concedida à CONSULEX, publicada na Revista n. 10 de 31/10/97.
6 – Exempi gratia: ROMS 2673/SC, 2674/SC, 2693/SC, 2873/SC, 2947/SC, 4512/SC, 4531/SC, 3180/RS, 3449/DF, 8426/PR, dentre outros – extraídos da jurisprudência do STJ.
7 – Antônio Souza Prudente é magistrado, titular da 6º Vara da Seção Judiciária da Justiça Federal de Brasília e professor da Universidade Católica de Brasília.
8 – apud jurisprudência do STJ: ROMS 1965/SP, 2171/GO, 2675/SC e 2717/SC.
Bacharel em Direito e
Auditor Fiscal
ÚLTIMOS COMENTÁRIOS