Em 2003, a Polícia Federal realizou 16 operações contra quadrilhas formadas por empresas e pessoas físicas. No ano passado essas autuações chegavam a 113. Entre 2002 e 2005, a incidência de inquéritos abertos por crimes ligados a entorpecentes caiu de 7,3% para 6,4%. 

A mudança no perfil da instituição foi conduzida pelo diretor-geral Paulo Lacerda, o primeiro a ocupar o cargo ininterruptamente por quatro anos desde os anos 90. Foi nesse período que o combate a crimes contra contra o sistema financeiro nacional, de lavagem de dinheiro e eleitorais, entre outros, passou para o primeiro plano. 

A sucessão na PF, missão mais espinhosa do ministro da Justiça, Tarso Genro, recém empossado no cargo, colocará em debate o perfil adquirido pela instituição. 

Uma conseqüência direta da ampliação desse leque de atuação da PF foi a aprovação alcançada junto à população, não acostumada a ver organizações de “colarinho branco” desmanteladas e parlamentares, desembargadores e empresários algemados. Por outro lado, se a aprovação popular à instituição foi usada como trunfo eleitoral pelo presidente Luiz Inácio da Silva na eleições, a alteração do perfil também gerou críticas. 

“Hoje a Polícia Federal virou a grande Corregedoria da União. A PF não é a maior polícia da União? O que a gente deseja é que ela combata o crimes que afetam a população diretamente. É melhor ter um político ou sonegador preso ou um traficante assassino preso?”, afirma Antonio Carlos Garisto, agente federal aposentado, ex-presidente da Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef) e um dos mais reconhecidos ex-policiais da instituição. Para um ex-diretor-geral e opositor da atual cúpula, Vicente Chelotti, a PF não faz mais segurança pública. “Se a PF prender contrabandista de whisk e cigarros falsificados, qual a contribuição disso para a vida da população?” 

Para quem esteve do lado de dentro da mudança da PF, a alteração do perfil é resultado de um processo contínuo de mudança de prioridades da Polícia Federal. “Antigamente o foco era o combate aos “subversivos” do regime militar. Com a abertura política, a bandeira passou a ser o combate às drogas. Mas o desenvolvimento do crime organizado abriu portas para outras áreas de atuação, cujo combate consolidamos na atual gestão, como a lavagem de dinheiro e crimes contra o meio ambiente”, afirma o diretor de combate ao crime organizado, Getúlio Bezerra. 

Aliado aos questionamentos das prioridades de combate da Polícia Federal, a sucessão também deve ensejar um debate sobre a fórmula adotada na atual gestão que propiciou a consolidação do atual perfil do órgão. Em 2003, uma das primeiras -e determinantes- medidas de Lacerda foi a descentralização da cúpula administrativa a partir da retirada de atribuições burocráticas da direção-geral. Assim, as principais diretorias da Polícia Federal ganharam mais liberdade de atuação, em especial a Diretoria-Executiva (Direx), chefiada por Zulmar Pimentel, a Diretoria de Combate ao Crime Organizado (DCOR), comandada por Getulio Bezerra, e a Diretoria de Inteligência Policial (DIP), gerida atualmente por Renato da Porciúncula. 

A despeito de terem suas principais áreas de atuação pré-determinadas – a Direx com crimes fazendários, a DCOR na repressão ao tráfico de armas, drogas e crimes contra o patrimônio, e a DIP com a coleta e processamento de informações-, a liberdade de atuação fez com que essas diretorias estruturassem uma forte equipe de investigação policial e que uma eventual apuração que entrasse na área de outra não necessariamente significasse a transferência do seu local de origem. O movimento teve como efeito colateral o reforço às disputas internas na instituição. 

Paralelamente, esses setores consolidaram uma nova mentalidade operacional que vinha crescendo no combate ao crime organizado. Baseados na busca do criminoso com maior potencial ofensivo, os esforços se centraram no desmantelamento de toda a cadeia criminosa, e não na mera apreensão de drogas ou prisão do usuário ou interceptador. “Saímos da síndrome da estatística. Antigamente, um inquérito bem feito era só mais um inquérito e havia muitos inquéritos abertos que não davam em nada. Hoje nos interessa principalmente prender a origem da cadeia criminosa e dar fim a ela”, afirma Getúlio Bezerra, chefe do combate ao crime organizado. 

Por enquanto, tudo indica que a PF deve manter a linha de atuação. prova disso é que Lacerda deverá ficar no cargo por mais alguns meses e ajudar o novo ministro da Justiça, Tarso Genro, na indicação do seu sucessor. Ao mesmo tempo, Lula o preparará para uma nova função, que certamente não será política. Até lá, porém, seu principal dilema será encontrar alguém que, como ele, coloque-se acima dessas correntes ou opte por uma delas. 

Na atual bolsa de apostas, sete delegados federais são mencionados. O favorito é Luis Fernando Corrêa, integrante do governo Lula desde 2003, quando assumiu a Secretaria Nacional de Segurança Pública. Desde então, seu desempenho agrada ao presidente. Discreto como Lacerda, fortaleceu-se após duros embates. O primeiro, no imbróglio gerado pela intervenção ou não da Força Nacional de Segurança no Estado do Rio de Janeiro, então governado pelo oposicionista casal Garotinho. O segundo, na definição do plano de segurança dos Jogos Pan Americanos do Rio, em que sua visão prevaleceu sobre a dos militares. Além disso, Corrêa agrada tanto aos agentes federais quanto aos delegados, categorias que normalmente divergem quando o assunto é a sucessão na PF. 

Dentro da instituição, estão cotados Zulmar Pimentel, atual diretor-executivo e número 2 do órgão, e Renato da Porciúncula, diretor de inteligência. Ambos, porém, enfraqueceram-se na sucessão após o vazamento -acredita-se por Porciúncula- da sindicância 21/2006, que investiga prováveis abuso de poder por Zulmar, que teria utilizado aviões da corporação para conduzir uma de suas filhas entre Brasília e Recife e outra entre Brasília e o Rio. Também teria se deslocado de avião oficial, em Manaus (AM), por um trecho de 14km. Outro forte concorrente é Getúlio Bezerra, da Diretoria de Combate ao Crime Organizado. Correndo por fora, estão cotados os superintendentes do Rio Grande do Sul, Francisco Mallmann, de São Paulo, Geraldo Araújo, e do Paraná, Jaber Saadi. 

No centro do debate sucessório também se questiona a autonomia política da instituição. Na gestão Lula, a PF foi elogiada e criticada tanto por governistas quanto por oposicionistas e sua independência foi colocada em xeque em algumas situações, como o atraso na liberação das fotos do pagamento de um suposto dossiê contra tucanos durante a eleições de 2006 e na elaboração dos inquéritos do mensalão e do caso Waldomiro Diniz. Por outro lado, diversas operações deflagradas contra parlamentares, desembargadores e funcionários públicos deram a sensação à população de que a PF finalmente alcançara sua autonomia. 

Caio Junqueira e Juliano Basile

Valor Econômico

19/3/2007