Como funciona a máquina de investigar e prender que surpreende o País pelo arrojo, inteligência e sucesso
“Parabéns, doutor! Que operação…”
Espontânea, a frase partiu de um homem conhecido como Torturado, codinome de Lucivaldo Laurindo, no momento em que, junto a outros 25 bandidos, foi algemado e deitado sobre o chão de uma casa em Porto Alegre. Começava ali, sem o disparo de um tiro sequer, a mais espetacular seqüência de prisões entre o crime organizado dos últimos tempos. Na segunda-feira 4, poucos dias depois, em meio à captura em flagrante de outros 20 assaltantes de banco em dez Estados do País, chegou-se a um endereço no Paraguai no qual foi apreendido um dos mais bem fornidos arsenais montados este ano: 222 revólveres, 195 pistolas e 174 escopetas e rifles, prontos para circular no eixo Rio-São Paulo. Fulminantes, servindo-se de espionagem e, ao mesmo tempo, alta tecnologia, todas essas ações têm uma marca em comum: a marca da Polícia Federal.
O ponto central para o sucesso desta e de outras operações cinematográficas fica no quinto andar do “Morcego negro” – a sede da corporação, em Brasília. É lá, sob vigilância permanente de câmaras de vídeo e com o acesso protegido por senhas, que funciona a Diretoria de Inteligência Policial (DIP). Desse andar saem ordens para prisões de todos os naipes, do ex-governador Paulo Maluf à empresária Eliana Tranchesi, dona da Daslu. E também para operações, em conjunto com a polícia paraguaia, do arsenal na semana passada. A DIP tem cerca de 100 agentes na capital federal. Eles mal se conhecem entre si. É famoso no Rio de Janeiro o caso de um agente que se vestiu de mendigo e por cinco dias viveu na porta de um delegado da própria PF. Ao cabo, deu voz de prisão ao superior, flagrado ao receber propina. Os agentes do DIP têm a missão de esmiuçar o modus operandi dos alvos, nem que para isso tenham que ficar no encalço deles 24 horas por dia. Eles têm carta branca para viajar para onde for preciso atrás dos investigados. Quando mulheres, são conhecidas como “andorinhas”. Isso porque muitas vezes se imiscuem entre os bandidos usando as armas do charme e da sensualidade.
Também é no quinto andar da sede nacional que fica o Guardião. Trata-se do supersistema de computadores que possibilita a administração de centenas de escutas telefônicas e cruza dados com arquivos policiais nacionais e do mundo. É um dos mais modernos aparelhos de inteligência policial do planeta, resultado de um movimento em direção à renovação da matriz tecnológica da PF. O primeiro passo nesta direção foi dado no ano 2000. Até ali, a PF era vista como uma organização repleta de policiais “chuta-portas” e apodrecida pela corrupção. Nas esferas mais altas, a imagem era ainda pior. Chamavam-na de “apêndice” das agências policiais dos Estados Unidos. Ao final dos anos 1990, os carros e até a gasolina da estrutura da PF brasileira eram doações da Agência Central de Inteligência (CIA). “O dinheiro é o nosso, as regras são nossas”, chegou a declarar, em maio de 1999, o segundo da embaixada americana em Brasília, James Derham. Se há males que vêm para bem, esse foi um caso. Enquanto Derham teve de voltar para os EUA, convocado por seu governo, aqui começou uma mexida na velha estrutura. O orçamento ganhou reforço. Saiu de R$ 100 milhões em 1999 para R$ 200 milhões no ano seguinte. As promoções passaram a privilegiar competência em lugar da antiguidade. Este ano, o orçamento da PF é de R$ 600 milhões.
Numa palavra, a PF modernizou-se. Exemplo: a prisão nos últimos dias dos assaltantes de banco começou a ser arquitetada há mais de um ano. O ponto de partida foi prosaico. Na busca de pistas em torno do assalto de R$ 164,8 milhões do Banco Central em Fortaleza, em agosto do ano passado, um dos agentes federais não se esqueceu de colher, em meio à lama formada à volta do túnel abandonado, um cartão usado de telefonia pré-pago. Seu número se desdobrou na seqüência de escutas monitoradas pelo Guardião. Sem alarde, completando o trabalho de interceptação de mensagens com espionagem em campo, os federais conseguiram, 390 dias após a pescaria no barro, ouvir do bandido “Torturado” o elogio pela eficiência da operação final. A cada dia, depois dessas prisões, a instituição passou a receber uma média de 100 e-mails de congratulações. Na parada militar da quinta-feira 7, em Brasília, um pelotão da PF desfilou. Foi o momento mais aplaudido da cerimônia.
Hoje, 11 mil policiais federais se revezam em missões pelo País. Têm o apoio de cinco helicópteros, nove aviões, duas dezenas de embarcações e contadas 2.327 viaturas. Desde 2003, esse aparato realizou 119 mil operações. Até as 17 horas da quarta-feira 6, nada menos que 3.728 pessoas haviam sido presas pela PF nos últimos três anos. Ao contrário dos serviços de informação dos Estados, que, até hoje, se sustentam na criminosa tríade tortura, gansos – como os informantes são chamados – e grampos ilegais, a PF age em parceria com juízes e com discrição crescente. A Federal também cortou na própria carne. Acusados de corrupção, mais de 60 integrantes da própria PF foram presos nos últimos tempos. Outra demonstração de que a PF, realmente, busca dar as costas ao atraso é que o quadro de servidores, de 9.289 em 2002, chegará aos 15 mil no próximo ano – quatro mil estão em treinamento. O cargo está tão em alta que no último concurso para agente 187 mil candidatos disputaram cinco mil vagas.
Ações incertas e segredos fazem parte do cotidiano desses policiais que muitas vezes não sabem ao certo o que vão fazer. Antes das megaoperações – e foram 284 desse tipo nos últimos três anos –, os agentes secretos ficam em total concentração. Passam a noite juntos, confinados. Só são avisados da tarefa em cima da hora. A partir daí, não podem mais falar ao telefone. Nos últimos meses, três agentes traíram essa norma e acabaram presos. Normalmente, para cada uma dessas operações, a polícia arregimenta agentes de norte a sul do Brasil. Quase sempre, os policiais dos Estados onde a missão acontecerá não participam. No máximo, servem de guias. Novamente, para evitar vazamentos e conflitos de interesse. A mobilização para reunir os policiais é um trabalho à parte. Aviões da própria PF ou da Aeronáutica saem pelas capitais recolhendo os agentes escalados. Da origem ao destino, com tantas escalas, esses vôos podem durar até 18 horas. A preparação dessas missões, porém, é bem mais dinâmica. A depender do tamanho e da urgência da operação, é possível, num curto espaço de tempo de duas horas, colocar em qualquer cidade do País um efetivo de 50 homens do destemido Comando de Operações Táticas, o COT, o grupo de elite da PF, espécie de Swat brasileira.
Antes, as investigações ficavam restritas à burocracia da saleta do delegado e do escrivão. Os agentes saíam às ruas para cumprir diligências; na volta entregavam as informações e o papelório era despachado, sem que fosse averiguado se aquele crime tinha relação com um outro investigado pelo delegado vizinho. Agora, a polícia cruza dados e mergulha mais fundo. Os bandos criminosos são investigados como um todo até se chegar ao tubarão. Saíram os “chuta-portas” e entraram os “papeleiros”, como são chamados os analistas de informática.
A parafernália de investigação de que a PF tem lançado mão ultimamente inclui equipamentos dignos de filmes de espionagem, como botões de camisa e telefones celulares que, na verdade, são câmeras e gravadores de áudio. Pequenos sensores que emitem sinais de GPS são colocados em veículos de suspeitos. Isso permite acompanhar a localização dos alvos em tempo real. Em lugares considerados estratégicos há microcâmeras funcionando 24 horas por dia. O monitoramento, remoto, pode ser feito de qualquer lugar do País. No ano passado, 60 policiais foram treinados para infiltrações em quadrilhas, em três cursos ministrados aqui por policiais da Alemanha, dos Estados Unidos e da Inglaterra. Nas operações Canaã e Overbox, realizadas há um ano, ainda durante a fase de investigações, um policial foi plantado num grupo de agentes da própria PF e de servidores da Receita Federal, que haviam montado um balcão de negócios no aeroporto de Guarulhos para vender vistos fraudados e facilitar o contrabando. Resultado: 50 prisões.
A Operação Anaconda, realizada em 2003, é tida como um marco para o trabalho de inteligência da polícia. “Até essa data muitos dos nossos eram sócios do crime organizado”, conta um delegado paulista que pede o anonimato. Como entre os alvos estavam juízes, integrantes do Ministério Público e também policiais, foi preciso se cercar de cuidados para que toda a investigação não ruísse. O know-how abriu caminho para outras operações que, cada vez mais, incluíram nomes de famosos e poderosos. É também o trabalho de inteligência que permite aos policiais, muitas vezes, sair e voltar das operações sem dar um tiro sequer. Conhecendo o inimigo, suas rotinas e seu potencial de reação, fica mais fácil. É por isso que está dando certo. O que falta é essa modernização chegar ao Poder Judiciário, repositário do trabalho policial.
“DÁ ALEGRIA PRENDER GENTE GRAÚDA”
A seguir, a palavra de um agente da PF sobre a Operação Dominó, que prendeu em agosto toda a cúpula do Estado de Rondônia:
No dia 3 de agosto, recebemos uma solicitação de agentes para uma operação no dia seguinte. Me ofereci. Deveríamos nos apresentar com uniforme ostensivo (roupa preta), mala para três dias, armamento pessoal, algema e rádio. Não nos foi dito para onde iríamos. Isso sempre motiva as apostas sobre o destino e a missão. É difícil alguém acertar. Perto da meia-noite, os aviões chegaram. A bordo fomos informados de que estávamos indo para Rondônia. Era fácil reconhecer o tempo de serviço dos policiais: quanto mais equipamento, menos tempo de polícia. Tinha gente com fuzil, colete à prova de balas, cantil… Na Base Aérea de Porto Velho, o briefing da missão foi dado às quatro e meia da manhã. A missão atingiria a cúpula do Estado. Sempre dá alegria prender gente graúda. Quando chegamos à casa do presidente do Tribunal de Justiça, ele disse que ninguém entraria ‘porra nenhuma’. O delegado mostrou o mandado de prisão. Só aí a ficha do desembargador caiu. E ele também. Às 12h40 do dia seguinte estava de volta a Brasília. Contei a história para minha namorada e dormi depois de quase 36 horas no ar.
Alan Rodrigues, Hugo Marques e Rodrigo Rangel
Isto é num. 1925
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